Colocar Klein e Beauvoir em diálogo não é sobre determinar quem está "certa", mas sobre iluminar as dimensões da experiência humana que cada uma privilegia. As consequências são ricas e complexas:
1. A Origem da Ética: Culpa vs. Responsabilidade
Klein localiza o germe da ética no drama psíquico mais primitivo. A moralidade nasce de um conflito emocional inconsciente: a culpa por ter odiado e danificado, em fantasia, aquele que se ama e de quem se depende. A ética é, em sua origem, reparatória.
Beauvoir, por outro lado, vê a ética como uma conquista consciente da liberdade. A ética emerge quando o indivíduo assume sua condição de ser livre e, portanto, responsável, não apenas por si mesmo, mas pelo mundo e pelos outros. A ética é projetual e solidária.
Consequência: Esta divergência nos força a perguntar: a nossa capacidade de cuidar do outro vem de um sentimento arcaico de culpa (Klein) ou de uma decisão autêntica de engajamento (Beauvoir)? A resposta provavelmente envolve ambas as dimensões.
2. O Determinismo Inconsciente vs. A Liberdade Existencial
Para Klein, somos, em grande medida, governados por um inconsciente repleto de fantasias, impulsos e objetos internalizados. Nossa subjetividade é profundamente moldada por experiências pré-verbais e mecanismos de defesa dos quais não temos consciência.
Para Beauvoir, embora estejamos situados em um corpo, uma história e um contexto social (a "facticidade"), a liberdade é a condição fundamental. Podemos sempre escolher como nos relacionar com essa facticidade, recusando a "má-fé" (a negação de nossa liberdade).
Consequência: Esta é uma tensão central. A visão de Klein pode parecer mais determinista, enquanto a de Beauvoir é mais agencial. No entanto, a psicanálise kleiniana também busca a libertação através da elaboração do inconsciente. Beauvoir, por sua vez, reconhece que a liberdade é sempre uma luta contra condicionamentos internos e externos.
3. O Outro: Objeto Interno vs. Sujeito em Reciprocidade
Em Klein, o outro é inicialmente internalizado como uma figura dividida ("seio bom"/"seio mau"). Nossa relação com os outros no mundo adulto é sempre filtrada por essas relações de objeto internas. O outro é, em última análise, uma figura em nossa psique.
Para Beauvoir, o outro é um sujeito autônomo e livre, cujo olhar pode me objetificar, mas com quem posso estabelecer uma relação ética de reciprocidade e reconhecimento mútuo.
Consequência: A perspectiva de Klein explica a intensidade emocional, a transferência e a dificuldade de nos relacionarmos com o outro em sua alteridade genuína. A perspectiva de Beauvoir oferece um ideal ético para superar essa dinâmica de projeção e objetificação, aspirando a um encontro verdadeiro entre sujeitos.
Conclusão Síntese: O Interno e o Externo em Diálogo
A comparação entre Melanie Klein e Simone de Beauvoir revela duas cartografias complementares, porém distintas, da condição humana.
Klein nos fornece uma "arqueologia da psique", um mapa do mundo interno, dos conflitos primitivos que fundam nossa vida emocional e nossa capacidade (ou incapacidade) de amar e reparar. Ela explica as forças profundas e muitas vezes obscuras que nos constituem.
Beauvoir nos fornece uma "filosofia do engajamento", um mapa da existência no mundo, um chamado para assumirmos nossa liberdade e responsabilidade diante dos outros e da história. Ela traça o horizonte ético que podemos almejar a partir de nossa condição ambígua.
A consequência mais profunda é entender que não podemos reduzir o ser humano a apenas uma dessas dimensões. Somos, ao mesmo tempo, produto de uma história psíquica inconsciente e profundamente determinante (Klein) e agentes livres, responsáveis por projetar um sentido e um futuro ético em um mundo compartilhado (Beauvoir). Negar a dimensão kleiniana é ignorar as profundezas turbulentas de nossa própria alma. Negar a dimensão beauvoiriana é abdicar de nossa liberdade e de nossa responsabilidade para com o mundo.
REFERÊNCIAS
Obras de Melanie Klein
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KLEIN, Melanie. A psicanálise de crianças. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
KLEIN, Melanie. Contribuições à psicanálise (1921-1945). São Paulo: Mestre Jou, 1981.
KLEIN, Melanie. O desenvolvimento inicial da consciência na criança. In: ______. Inveja e gratidão e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1991. p. 215-232.
Obras de Simone de Beauvoir
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BEAUVOIR, Simone de. Por uma moral da ambiguidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.
BEAUVOIR, Simone de. O existencialismo e a sabedoria das nações. São Paulo: Landy, 2004.
Obras de Comentadores e Teóricos Secundários
CÉU E DIAS, Sofia. Simone de Beauvoir: uma vida, uma obra, um pensamento. Lisboa: Temas e Debates, 2019.
GRODD, Held. O universo de Melanie Klein: uma introdução à sua vida e obra. Porto Alegre: Artmed, 1998.
SEGAL, Julia. Introdução à obra de Melanie Klein. 4. ed. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
SICHERMANN, Rony. Klein: a construção do pensamento psicanalítico. São Paulo: Escuta, 2000.
Obras sobre Filosofia Existencialista e Psicanálise
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
GREEN, André. Psicanálise contemporânea: relações de objeto e situação analítica. Porto Alegre: Artmed, 1990.
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