A metáfora da "Terra do Nunca", de J.
M. Barrie representa com precisão o ambiente digital contemporâneo: um
território sedutor e sem fronteiras que, sob uma fachada lúdica, esconde os
"ganchos" invisíveis de uma arquitetura projetada para capturar e
reter a atenção. Esse projeto, alicerçado no capitalismo de vigilância descrito
por Shoshana Zuboff, tem como combustível os dados dos usuários e, como
mecanismo central, a arquitetura persuasiva – um conjunto de técnicas (reprodução
automática, notificações, recompensas variáveis) que condicionam o
comportamento e aceleram artificialmente o desenvolvimento de crianças e
adolescentes. Este ensaio analisa como essa arquitetura atua como um potente
vetor de adultização precoce, impondo aos jovens padrões estéticos, linguagens
e preocupações típicas da vida adulta, e discute os complexos desafios que esse
fenômeno representa para a regulação estatal e para a educação.
Ademais, a adultização online é um subproduto direto da lógica de negócio das plataformas.
Como previsto por Neil Postman, a infância, enquanto fase distinta e protegida está
se dissipando em um ambiente que não reconhece fronteiras etárias. Além disso,
a arquitetura algorítmica persuasiva explora a hipervulnerabilidade digital de
crianças e adolescentes – uma condição de assimetria informacional, técnica e
neurocognitiva que os torna alvos fáceis. Suas "sombras digitais",
metáfora para os rastros de dados que deixam online, são capturadas e
utilizadas para criar perfis comportamentais detalhados. Então, esse material
alimenta sistemas de recomendação que, prioritizando o engajamento,
frequentemente os expõem a conteúdos sexualizados, desafios perigosos e
publicidades predatórias, roubando-lhes o direito a um desenvolvimento
psicossocial saudável e natural.
Diante desse cenário, a atuação estatal, na
visão de Ingo Wolfgang Sarlet, torna-se imperativa para a realização concreta
dos direitos fundamentais. Conforme a resposta jurídica que se materializou na
Lei nº 15.211/25, o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital),
cujos pilares foram sintetizados por Laís Peretto. Nesse sentido, a lei opera
uma mudança de paradigma, invertendo o ônus da proteção: de uma postura reativa
das plataformas para uma obrigação proativa de segurança desde a concepção (Safety by Design). Seus mecanismos
incluem:
- Verificação etária confiável (não por autodeclaração) e
ferramentas de controle parental acessíveis.
- Proibição do perfilamento e da publicidade direcionada
a crianças.
- Remoção ágil de conteúdos ilegais, como os de abuso e
exploração sexual.
Ademais, a fiscalização ficará a cargo de uma
autoridade nacional autônoma, com previsão de multas que podem chegar a R$ 50
milhões por infração, garantindo o poder de coercividade necessário. 
Portanto, apesar do avanço legal, obstáculos significativos persistem. Na regulação, há uma tensão constante entre proteção e liberdade de expressão, além da complexidade técnica de fiscalizar algoritmos opacos, como bem aponta o senador Alessandro Vieira, relator da ECA Digital. Paralelamente, os estudos de Daniel Becker pediatra, revelam que a exposição precoce pode gerar traumas profundos e comprometer a formação da personalidade, exigindo uma abordagem educacional que vá além da tela. A pesquisa de Danillo Magnum Farias Chagas e colegas da Universidade Tiradentes corrobora essa visão, associando o uso excessivo de mídias digitais ao aumento de sintomas de depressão e estresse em adolescentes. Nesse contexto, o advocacy digital de figuras como Felca (Felipe Bressanim) foi crucial para dar visibilidade ao problema, catalisando um movimento social que pressionou o poder público a agir. Por fim, a efetividade da lei dependerá de um esforço coletivo, que envolva, conforme defende Flávio Arns, relator do projeto no Senado, não apenas a coerção sobre as plataformas, mas também a promoção de uma educação midática crítica para capacitar jovens, famílias e educadores a navegarem esse ambiente de forma segura e consciente.
REFERÊNCIAS
ARNS, Flávio. Educação digital e proteção infantojuvenil.
Brasília: Senado Federal, 2025.
BARRIE, J. M. Peter e Wendy: a metáfora da "Terra do
Nunca" para descrever o ambiente digital contemporâneo.
Londres: Hodder & Stoughton, 1911.
BARRIE, J. M. Peter Pan. London: Hodder &
Stoughton, 1911.
BECKER, Daniel. Crianças sob pressão digital:
saúde emocional e desenvolvimento. São Paulo: Companhia das Letras,
2023.
BRESSANIM, Felipe (Felca). O poder das telas e a infância
perdida. São Paulo: Autêntica, 2024.
BRASIL. Lei nº 15.211, de 10 de setembro de 2025.
Institui o Estatuto Digital da Criança e do Adolescente (ECA Digital). Diário
Oficial da União: Poder Executivo, Brasília, DF, 11 set. 2025.
CHAGAS, Danillo Magnum Farias et al. Uso
excessivo de mídias digitais e saúde mental de adolescentes.
Aracaju: Universidade Tiradentes, 2022.
EDUCAÇÃO MIDIÁTICA E FORMAÇÃO CRÍTICA NA ERA
DIGITAL. In: Neurociência
e Gamificação. E-book, 2025. p. 43–51. Disponível em: https://zenodo.org/records/14645722. Acesso em:
21 out. 2025.
PERETTO, Laís. ECA Digital: proteção de crianças e
adolescentes no ambiente online. Brasília: Senado Federal, 2025.
POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância.
Tradução de Suzana Menescal e José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Graphia,
1999.
POSTMAN, Neil. O desaparecimento da infância.
Rio de Janeiro: Graphia, 1994.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. 13. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e
direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 12. ed. rev.
e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2022.
SOARES, Marco Britto. Educação midiática, jornalismo
na escola e o desafio da avaliação. 2025. Dissertação (Mestrado em
Jornalismo) – Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2025.
VIEIRA, Alessandro. Relatório do Estatuto Digital
da Criança e do Adolescente (ECA Digital). Brasília: Senado Federal,
2025.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de
vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder.
Tradução de George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
ZUBOFF, Shoshana. The age of surveillance
capitalism: the fight for a human future at the new frontier of power.
New York: PublicAffairs, 2019.

Nenhum comentário:
Postar um comentário