Carl Rogers e a Filosofia: As Raízes de uma Psicologia Humanista

 


A grande contribuição de Carl Rogers não foi apenas uma nova técnica terapêutica, mas uma postura filosófica radical sobre a natureza humana. Sua Abordagem Centrada na Pessoa é, antes de tudo, um sistema de valores e crenças com profundas ressonâncias em correntes filosóficas como o Existencialismo, a Fenomenologia e o Humanismo.

1. A Rejeição do Modelo Mecanicista: Um Novo Paradigma

A psicologia do início do século XX era dominada por dois paradigmas:

  • Psicanálise, que via o homem como determinado por impulsos inconscientes e conflitos passados.

  • Behaviorismo, que o entendia como um produto de condicionamentos ambientais.

Rogers, influenciado pela filosofia existencial, rejeitou essa visão determinista e mecanicista. Ele propôs uma mudança de foco:

  • Do Determinismo para a Agência Pessoal: O ser humano não é um brinquedo de forças internas ou externas, mas um agente livre e autónomo, capaz de fazer escolhas e dirigir a sua própria vida.

  • Do Passado para o Presente: Enquanto a Psicanálise escavava o passado, Rogers focou-se no "aqui-e-agora", na experiência presente e na capacidade do indivíduo de se redefinir no momento atual. Esta é uma ideia profundamente existencial.

2. A Primazia da Experiência Subjetiva: A Influência Fenomenológica

O conceito mais central na filosofia de Rogers é o Campo Fenomenal. Ele foi diretamente influenciado pela Fenomenologia de filósofos como Edmund Husserl e Martin Heidegger, que defendiam que a única realidade a que temos acesso direto é a nossa experiência subjetiva.

  • A Realidade é a Percepção: Para Rogers, o que importa na terapia não é a "realidade objetiva", mas a maneira como o cliente a percebe e a vive. A sua máxima era: "O indivíduo existe num mundo de experiência do qual ele é o centro".

  • A Subjetividade como Guia: Isto levou à sua confiança radical na capacidade do cliente de encontrar o seu próprio caminho. O terapeuta não é um especialista que interpreta uma "realidade oculta", mas um facilitador que ajuda o cliente a explorar e a compreender o seu próprio mundo fenomenal.

3. "Tornar-se Pessoa": O Ideal Existencial de Autenticidade

O objetivo da terapia rogeriana – tornar-se uma "pessoa em funcionamento pleno" – é um ideal ético e filosófico que ecoa fortemente o pensamento de Søren Kierkegaard e Jean-Paul Sartre.

  • A Vida Autêntica vs. A Má-Fé: Rogers via a incongruência (a desconexão entre a experiência real e o self percebido) como a principal fonte de sofrimento. Isso é análogo ao conceito existencial de "má-fé" (Sartre), onde a pessoa foge da sua liberdade e responsabilidade, vivendo de acordo com as expectativas dos outros ("Condições de Mérito").

  • A Congruência como Autenticidade: A congruência (ser quem verdadeiramente se é) é a realização máxima da autenticidade existencial. É a coragem de existir a partir do próprio centro, assumindo a responsabilidade pelas próprias escolhas.

4. A Ética da Relação: "Tornar-se Com" o Outro

A tríade Autenticidade, Empatia e Aceitação Incondicional é mais do que uma técnica; é uma postura ética sobre como os seres humanos devem relacionar-se.

  • Aceitação Incondicional e a Ética do Cuidado: Ao oferecer uma consideração positiva incondicional, o terapeuta afirma o valor do cliente simplesmente por ele existir, não pelo que ele faz ou representa. Esta é uma forma prática de amor (em grego, agapē) e uma poderosa alternativa a éticas baseadas em julgamento e condicionalidade.

  • A Empatia como Via de Acesso ao Outro: A compreensão empática é a ferramenta para entrar no mundo fenomenal do outro, validando a sua experiência e reconhecendo a sua humanidade única. É um antídoto para a alienação e a solidão.

5. A Tendência Atualizante: Uma Filosofia de Confiança na Natureza

A crença de Rogers na "tendência atualizante" é talvez o seu postulado mais otimista e filosófico. É uma visão teleológica (com um propósito) da natureza humana, que contrasta com visões mais pessimistas.

  • Inato e Construtivo: Rogers acreditava que, tal como uma semente tem inatamente a tendência para se tornar uma árvore, o ser humano tem uma tendência inata para se desenvolver de forma construtiva e socializada quando num ambiente favorável.

  • Confiança vs. Controlo: Esta crença levou-o a confiar no processo do cliente e a rejeitar o controlo direto por parte do terapeuta. É uma filosofia que valoriza a autorregulação organísmica em detrimento da imposição externa de valores e soluções.

Conclusão: A Psicologia como Filosofia Aplicada

Carl Rogers não se limitou a criar um método de psicoterapia. Ele fundou uma filosofia prática da relação humana. Ao integrar ideias da Fenomenologia (a importância da subjectividade), do Existencialismo (a liberdade e a autenticidade) e da tradição Humanista (a confiança no potencial humano), ele ofereceu não só um caminho para a cura, mas um modelo para uma vida significativa e para relações éticas e transformadoras.

A sua obra é um testemunho de que toda a grande psicologia está, inevitavelmente, enraizada numa profunda reflexão sobre o que significa ser pessoa. Ele traduziu conceitos filosóficos complexos em atitudes simples, porém profundas, que continuam a inspirar a educação, a liderança, os cuidados de saúde e, sobretudo, a forma como nos relacionamos connosco próprios e com os outros.

REFERÊNCIAS

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